Constitucionalidade da Lei Ferrari é questionada no STF

Publicado em 09 de Janeiro de 2024 em Boletins

A Procuradoria-Geral da República propôs, em 13 de dezembro de 2023, Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra dispositivos da Lei nº 6.729, de 28 de novembro de 1979, que dispõe sobre a concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre (Lei Ferrari). Os dispositivos especificamente impugnados[1] versam, entre outros temas, sobre a vedação da comercialização de veículos fabricados ou fornecidos por outro produtor; a proibição ou limitação de vendas por concessionárias em área geográfica diversa da estabelecida contratualmente; definição de quota e estoque de veículos; vedação de revenda; vendas diretas; regulação dos temas por meio de Convenção da Categoria Econômica e de Convenção de Marca; contrato determinado por prazo não inferior a cinco anos; prazo para pagamento de indenização em caso de rescisão.

 

A PGR sustenta que as normas impugnadas violam os arts. 1º, IV, e 170, caput (regime de proteção da liberdade de iniciativa), art. 5º, II (liberdade de contratar), art. 170, IV (livre concorrência), art. 5º, XXXII, e art. 170, V (defesa do consumidor), e art. 173, § 4º (da repressão ao abuso de poder econômico), todos da Constituição Federal. De forma sucinta, elencamos abaixo os principais argumentos apresentados pela PGR:

 

  • Incompatibilidade com o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). A Lei Ferrari, ao criar uma série de isenções que autorizam a prática de atos comerciais contrárias à Ordem Econômica e determinar inserções de cláusulas contratuais concorrencialmente restritivas, dificulta a análise de condutas anticompetitivas por parte do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), à luz da Lei nº 12.529/2011 (“Lei de Defesa da Concorrência”), permitindo não só o abuso de poder econômico como também a colusão horizontal entre montadoras ou entre concessionárias, ou até mesmo a colusão vertical entre montadoras e concessionárias.
  • Ofensa aos preceitos fundamentais da livre iniciativa e da livre concorrência e inconstitucionalidade da regulação estatal no setor automotivo. A Lei Ferrari regula a formatação completa da dinâmica comercial e contratual entre montadoras e concessionárias, sendo que o setor automotivo não é elencado na Constituição como regulado, sensível ou de risco.
  • Ofensa ao princípio da defesa do consumidor. A estrutura contratual prevista na Lei Ferrari reduz a competitividade do mercado de veículos automotores novos, além de reduzir as opções e a qualidade dos produtos ofertados ao consumidor final. Por consequência, há redução dos incentivos à oferta de opções comerciais e à própria variedade de produtos. Exemplificativamente, é citada a proteção da área de atuação do concessionário que, ao passo que favoreceria a atividade comercial do concessionário, criaria incentivos econômicos contrários ao interesse do consumidor por garantir área de revenda exclusiva, criando uma espécie de imunidade à concorrência, fator que conduziria à elevação de preços.

 

Ao final, foi requerido pela PGR que os dispositivos de lei mencionados sejam declarados inconstitucionais, bem como que, subsequentemente, seja decretada a não recepção integral da Lei Ferrari. Não houve pedido de medida liminar no processo.

 

A ADPF recebeu o nº 1.106 e foi distribuída para a relatoria do min. Edson Fachin, tendo os autos sido remetidos à conclusão em 14 de dezembro de 2023. Após a recepção da ação, deverão ser colhidas informações junto ao presidente da República e ao Congresso Nacional, bem como deve ser ouvida a Advocacia-Geral da União. Se entender necessário, o ministro relator também poderá requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para emissão de parecer sobre a questão, ou, ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria.

 

Eventual julgamento pelo STF deverá ocorrer em sessão com pelo menos dois terços dos ministros, e o acórdão terá validade e produzirá efeitos para todos de forma geral (eficácia erga omnes) e também terá efeito vinculante, obrigando os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública a seguirem o entendido firmado pelo STF. É possível a habilitação de terceiros como amicus curiae no âmbito da ADPF, de modo que as relevantes associações do setor automotivo poderão se habilitar, caso desejem. O relator pode autorizar a realização de sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo.

 

Se a ação for julgada procedente, alguns dos efeitos práticos serão a extinção: (i) da vedação da comercialização de veículos fabricados ou fornecidos por outro produtor (cláusula de exclusividade); (ii) da proibição ou limitação de vendas por concessionárias em área geográfica específica (exclusividade territorial); (iii) das limitações às vendas diretas, com o consequente aumento da possibilidade de compra pelo consumidor direto com a montadora; (iv) da proibição de revendas; (v) do estabelecimento das quotas de veículos e do índice de fidelidade, dentre outros. A procedência da ação ainda poderia, além de proporcionar a possibilidade de desenvolvimento de novos modelos de negócio entre montadoras e consumidores, abrir a possibilidade de maior atuação e fiscalização por parte do CADE.

 

Destaca-se, ainda, que esse tema não é novo na pauta do CADE. Além de ser objeto de discussão em diversos casos concretos no âmbito de controle de estruturas e de condutas, foi produzido estudo específico sobre o tema pelo Departamento de Estudos Econômicos do CADE (Nota Técnica nº 28/2022/DEE/CADE) – estudo assinado pelo Sr. Guilherme Mendes Resende, então economista-chefe do DEE à época e atual assessor especial da Presidência do STF. Nessa oportunidade, o DEE entendeu que a Lei Ferrari contém regras que consistem em restrições verticais, potencialmente prejudiciais ao ambiente concorrencial, e dispositivos que podem facilitar condutas concertadas entre agentes de mercado (e.g. convenções coletivas e uniformidade de preços), mostrando-se “inadequada a um ambiente de livre concorrência, uma vez que possibilita uma justificativa legal para práticas que poderiam ser investigadas e punidas pela autoridade de defesa da concorrência”.

 

Nesse sentido, o estudo concluiu pela necessidade de revisão da regulação das relações entre fabricantes e concessionários de veículos automotores, materializada na Lei Ferrari.

 

[1] art. 3, § 1º, b; art. 5, II, §§ 1º, 2º, 3º e 4º; art. 7º, I, II, III, §§ 1º, 2º, 3º e 4º; art. 8º, p.u.; art. 9º, §§ 1º, 2º e 3º; art. 10, §§ 1º, 2º e 3º; art. 12; art. 13, §§ 1º e 2º; art. 15, I, II, §§ 1º e 2º; art. 17, I, II, §§ 1º e 2º; art. 18; art. 19; art. 21; art. 27; art. 30.

 

Publicação produzida pela(s) área(s) Direito da Concorrência, Direito do Consumidor