Em maio de 2023, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou o Recurso Especial (REsp) nº 2.021.665/MS, de relatoria do ministro Moura Ribeiro, como representativo de controvérsia para uniformizar o entendimento acerca do poder geral de cautela dos magistrados diante de circunstâncias que provoquem a suspeita de ocorrência de litigância predatória.
A litigância predatória envolve situações em que o Poder Judiciário é acionado de forma massiva por meio de demandas patrocinadas por advogados com intenções deturpadas, isso é, mediante a utilização de mecanismos indevidos para a captação de clientes e o ajuizamento de ações infundadas.
O conceito de litigância predatória não conta atualmente com uma definição específica e geral, a qual encontra-se pendente de conceituação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cuja iniciativas nessa frente ainda se apresentam em fase embrionária.
Em 2022, o CNJ instituiu um grupo de trabalho com o objetivo de apresentar proposta para o enfrentamento da litigância predatória associativa, a qual ainda não foi concluída.
No ano passado, foi estabelecido pelo CNJ a Diretriz Estratégia nº 7 para que as Corregedorias Estaduais envidem esforços no sentido de promover melhores práticas e protocolos para combate à litigância predatória, cujos dados de atuação se encontram condensados em um portal nacional - Rede de Informações sobre a Litigância Predatória.
Mesmo antes da determinação de atuação das Corregedorias Estaduais pelo CNJ, os órgãos, juntamente com as Coordenadorias dos Núcleos de Monitoramento de Perfis de Demandas (Numopede) e os Centros de Inteligência Judicial dos Tribunais de Justiça já vinham expedindo normativas estaduais no intuito de combater a litigância predatória.
Das portarias e resoluções emitidas por tais autoridades, é possível se extrair alguns dos elementos caracterizadores da litigância predatória, dentre os quais destacam-se: a distribuição de um número elevado de ações por um mesmo advogado ou escritório de advocacia; a figuração de pessoas físicas em situação de vulnerabilidade social e econômica no polo ativo, em contraposição à figuração de grandes corporações no polo passivo das ações; e a apresentação de petições iniciais genéricas, sem respaldos probatórios e com idêntica questão jurídica envolvida.
Por tais características, o maior volume de litígios predatórios envolve a seara consumerista, o que tem implicado relevantíssimos prejuízos a empresas de diferentes setores da economia – especialmente ligados aos ramos financeiro, de telecomunicações, construção, seguros e varejo em geral.
Os reflexos da litigância predatória também recaem de forma muito gravosa sobre o próprio Poder Judiciário, já tomado pelo número excessivo de demandas regularmente propostas e tornado ainda mais sufocado pela propositura abusiva de novas ações.
Segundo dados do Centro de Inteligência da Justiça de Minas Gerais, em 2020, ingressaram na Justiça Estadual brasileira, no mínimo, 1.296.558 demandas com indícios de litigância abusiva envolvendo questões relacionadas a direito do consumidor. O custo dessas ações é estimado em montante superior a R$ 10 bilhões, verba arcada pelas empresas demandadas e pelo Estado, tendo em vista que quase a totalidade dos processos tramita com gratuidade de justiça aos autores.
Alçada a discussão ao Superior Tribunal de Justiça, em outubro de 2023, foi realizada audiência pública sobre a matéria no âmbito do Tema 1.198. O ato contou com a participação de relevantes instituições, como a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviços Móvel, Celular e Pessoa (Conexis), o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e órgãos representativos da advocacia brasileira.
Em 21 de fevereiro de 2024, teve início o julgamento efetivo do Tema 1.198. Após a realização de exposição oral pelos representantes das partes e dos interessados, o ministro relator Moura Ribeiro anunciou seu voto.
Em sua fala, o ministro relator acertadamente diferenciou o fenômeno da litigância de massa – referente ao alto número de ações distribuídas como consequência natural da sociedade massificada – da litigância predatória, essa sim caraterizada pelo uso abusivo do direito de ação.
Ainda em seu voto, o ministro se posicionou de forma favorável à adoção de medidas pelos magistrados que tenham como finalidade certificar e assegurar a regularidade do processo, o que se harmoniza com os princípios da duração razoável do processo, da proteção do consumidor, da cooperação e da primazia do julgamento de mérito, afinal.
O relator pontuou que exigências jurisdicionais excessivas constituem uma realidade inexpugnável e devem ser controladas pontualmente em cada caso concreto, o que reforça a necessidade de adoção de decisões devidamente fundamentadas. Todavia, tal fato não pode ser utilizado como óbice à adoção de boas práticas na condução judicial do feito.
Partindo dessas premissas, o relator votou no seguinte sentido: “o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, pode exigir, de modo fundamentado, e com observância a razoabilidade do caso concreto, que a parte autora emende a inicial, apresentando documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas”.
Na sequência, o ministro Humberto Martins requereu vista dos autos, sob a justificativa de que, ao seu ver, o tema demandaria a adoção de medidas não apenas judiciais, mas também administrativas, a situação exigiria um estudo mais aprofundado para definição de orientações conjuntas sobre a matéria.
O voto do ministro relator evidencia a preocupação do Poder Judiciário com a questão e premente a necessidade de uma rápida resposta à sociedade sobre a matéria. Eventuais contribuições administrativas à solução judicial proposta pelo relator – seja por parte do Conselho Nacional de Justiça ou da Ordem dos Advogados do Brasil –, apesar de salutares e sempre bem-vindas, podem atrasar o desfecho da temática perante o STJ.
Os alarmantes números em torno da litigância predatória comprovam que o tema demanda urgência e imediato socorro por parte das autoridades, sobretudo do Poder Judiciário, que, ao lado das empresas demandas de forma abusiva, é um dos grandes prejudicados pela crescente litigância deturpada observada nos Tribunais do país.
Texto escrito por Luciana Bazan e Harumi Hioki, sócia e advogada na área de Direito do Consumidor de TozziniFreire Advogados.