Da ludopatia ao jogo responsável: qual o papel da regulação e do STF?

Publicado em 24 de Fevereiro de 2025 em Artigos

O mercado regulado brasileiro surge com a expectativa de, rapidamente, se consolidar como um dos maiores e mais relevantes do mundo. No entanto, continua sendo alvo de mídia (não especializada) negativa sobre o setor.

 

Aos familiarizados com a indústria, é fácil perceber o sensacionalismo em torno do jogo compulsivo. No entanto, persistem preocupações sobre a real eficiência e suficiência das regras vigentes quanto à obrigatoriedade dos operadores promoverem o jogo responsável e implementar medidas necessárias e obrigatórias para evitar e mitigar os efeitos da ludopatia (compulsão por jogos de azar).

 

A ludopatia é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2018 como uma condição de saúde mental caracterizada pelo transtorno do controle de impulsos, resultando em uma necessidade incontrolável de apostar, mesmo diante de perdas e riscos significativos. Para o ludopata, a necessidade de participar do processo de realizar a aposta e experimentar a emoção da incerteza do resultado é predominante e o desfecho em si tem pouca ou nenhuma importância. 

 

Com evidências e o reconhecimento de que se trata de uma questão de saúde pública, a legalização do jogo ao redor do globo levou à criação de iniciativas de prevenção e tratamento do transtorno em diversos países, bem como à implementação de práticas de jogo responsável para minimizar os danos associados a essa patologia.

 

A promoção do jogo responsável, com a adoção de ferramentas modernas de mitigação de riscos relacionados ao jogo excessivo e compulsivo em ambientes de apostas, deve ser uma busca constante dos agentes do mercado, de forma voluntária, independentemente de regulamentação. Afinal, a sustentabilidade da indústria depende da existência de apostadores que se relacionam de forma saudável com o jogo.

 

No contexto brasileiro, a regulamentação tem o propósito de, entre outros aspectos, assegurar um ambiente onde as apostas devem ser realizadas de maneira segura e saudável, promovendo a conscientização sobre limites pessoais, educação sobre os riscos envolvidos no jogo, e estabelecendo limites claros para a publicidade dos operadores, que jamais devem passar a ideia de que se trata de um meio de enriquecimento ou sustento, além de incentivar comportamentos que evitem a dependência.

 

Ao se analisar o contexto geral brasileiro, a Lei nº 14.790/2023 e a Portaria SPA/MF n° 1.231/2024 são, sem dúvida, excelentes pontos de partida, visto que normas regulamentadoras dos transtornos de compulsão e dependência são escassas.

 

No entanto, para o combate eficiente à ludopatia, a simples imposição aos operadores da criação de ferramentas como limitadores de tempo e de autoexclusão, ainda que alinhadas ao espírito do jogo responsável, pode ser insuficiente.

 

Por exemplo, a forma aberta e genérica com que a norma brasileira regulou o tema acaba não criando um padrão mínimo e comum que todas as casas de apostas devem adotar em relação aos limites que os jogadores podem configurar para suas apostas – seja em relação a valores, frequência ou horários –, permitindo que diferentes casas tratem a mesma questão de maneira diversa. A falta de uniformidade na interpretação das regras principiológicas do ordenamento jurídico nacional permite a coexistência de operadores com níveis distintos de permissividade em relação aos limites para apostar.

 

Além de ser um problema de ordem regulatória e de saúde mental, a ausência de padrões mínimos claros sobre as regras de promoção de jogo responsável resulta em uma questão de direito concorrencial que merece especial atenção do legislador: ainda que de maneira involuntária, as regras em vigor acabam dando vantagem competitiva às casas de apostas menos rigorosas ou permissivas, que tenderão a atrair mais jogadores compulsivos ou com tendência ao transtorno de jogo do que aquelas que adotem regras mais rigorosas.

 

É importante ressaltar, no entanto, que atrair jogadores compulsivos para uma plataforma não deve ser visto, ao contrário do senso comum, como algo vantajoso para as casas de apostas. O jogador com transtorno de jogo tem maior tendência ao endividamento, contraindo dívidas que lhe permitem gastar mais do que seus próprios rendimentos. Isso pode acender um sinal de alerta para as estruturas internas de combate à lavagem de dinheiro, aumentando assim os custos regulatórios da casa de apostas e reduzindo suas margens de lucro.

 

Além disso, o fato de ainda não existir no ordenamento jurídico brasileiro um sistema que obrigue a extensão da decisão de autoexclusão, seja ela temporária ou permanente, a todos os operadores – similar ao Registro Nacional de Proibidos (Renapro) do Projeto de Lei (PL) nº 2.234/2022 – enfraquece toda a rede de proteção ao jogador. Em outras jurisdições, sistemas semelhantes estão em vigor, e a ausência de uma medida equivalente no Brasil permite que jogadores compulsivos utilizem outras plataformas além daquela da qual optaram por se excluir.

 

Naturalmente, a educação dos jogadores sobre como jogar de forma segura é uma parte fundamental para o sucesso das normas de jogo responsável. No entanto, no caso dos jogadores compulsivos, todo o sistema precisa funcionar de forma harmônica para que o combate à ludopatia seja efetivo.

 

Alternativamente, é possível que as casas de apostas se autorregulem em relação ao compartilhamento de informações sobre a decisão de autoexclusão entre os operadores. No entanto, é importante atentar para as limitações impostas pelas regras de proteção à privacidade e ao tratamento de dados pessoais. 

 

À luz da Lei Geral da Proteção de Dados (LGPD), seria possível criar regras comuns em termos de uso para que, ao optar pela autoexclusão, o apostador consinta com o compartilhamento dessa informação com as demais casas de apostas, permitindo sua exclusão automática também nessas plataformas. Esse compartilhamento de informação poderia ser justificado pelo interesse legítimo, considerando tanto o interesse do titular em ter um tempo para se avaliar e se curar quanto o interesse da sociedade em não fomentar a ludopatia.

 

Contudo, a medida não está isenta de riscos. Primeiramente, o sistema pode falhar se um operador não aderir voluntariamente à autorregulação. Além disso, o consentimento e o interesse legítimo são bases legais altamente contestáveis e, muitas vezes, frágeis. Também podem existir questões técnicas de interoperabilidade que impediriam que a casa de apostas que recebe a solicitação a cumpra.

 

Portanto, a existência de uma norma que obrigue a interoperabilidade entre as casas de apostas, bem como o compartilhamento desses dados, pode ser uma solução efetiva, como já reconheceu o regulador brasileiro, que ensaia a criação do cadastro de pessoas proibidas de apostar durante o ciclo regulatório 2025-2026. Idealmente, essa norma também deveria incluir requisitos para portabilidade de dados, segurança da informação e períodos de retenção e eliminação de dados.

 

Com todo o movimento em torno das casas de apostas e, especialmente, a influência dessa atividade na sociedade brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF) também entrou em cena e tem discutido os impactos e responsabilidades que os jogos de azar causam na população brasileira.

 

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7721 é um exemplo disso. A ADI, que discute a constitucionalidade da Lei nº 14.790/2023, deverá ser julgada pelo STF no primeiro semestre de 2025. Recentemente, em novembro de 2024, foi realizada uma audiência pública destinada a discutir os impactos das apostas online. Essa audiência teve como objetivo fundamentar uma decisão judicial mais abrangente, incorporando diferentes perspectivas da sociedade civil para enriquecer o debate regulatório.

 

Nessa oportunidade, o STF ouviu diversos players do mercado, desde especialistas no setor de apostas até pesquisadores. Por exemplo, a representante da Associação Nacional dos Aposentados, Pessoas com Deficiência, Idosos, Pensionistas e dos Assegurados da Previdência Social (ANADIPS) destacou que os jogos de azar podem resultar em ludopatia, uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e que atualmente carece de discussões aprofundadas sobre políticas públicas preventivas.

 

Representantes de associações de classe, como Márcio Malta, da Aigaming, ressaltaram que o Brasil possui cerca de 30 milhões de apostadores e que a maior parte dos estudos sobre ludopatia decorre de jogos físicos.

 

A ADI levanta outras questões importantes, como a responsabilidade civil e a proteção dos consumidores no setor de jogos e apostas. É evidente a preocupação da Corte Suprema com a proteção dos cidadãos contra práticas abusivas e a necessidade de garantir um ambiente seguro para os jogadores.

 

Nesse contexto, o jogo responsável e a implementação de melhorias regulatórias – que sempre ocorrerão, como em qualquer ambiente regulado – são fatores essenciais para o sucesso de um setor que acaba de se formalizar no ambiente jurídico brasileiro.

 

 

Escrito pelos sócios Jun Makuta e Caio Loureiro e pelas advogadas Adriana Ferreira Tavares e Letícia Cordeiro Longhi.

Publicação produzida pela(s) área(s) Gaming & E-sports