Sócia de TozziniFreire analisa os dois anos do Marco Civil da Internet

Publicado em 28 de Junho de 2016 em Podcasts

Vigente desde 23 de junho de 2014, a Lei nº 12.965/2014 instituiu o Marco Civil da Internet, estabeleceu um novo regime legal para as relações na internet no Brasil - por Patricia Helena Marta, sócia de TozziniFreire Advogados

Reconhecendo a complexidade da nova realidade digital, o Marco Civil da Internet passou por um amplo processo de consulta pública. Os debates que antecederam a sua promulgação envolveram diversos atores, como a Academia, o Comitê Gestor da Internet e as empresas do setor. Criou-se, inclusive, blog hospedado na plataforma Cultura Digital (rede social mantida pelo Ministério da Cultura e pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa - RNP), que resultou em mais de dois mil comentários diretos e incontáveis manifestações sobre o “#marcocivil” em ferramentas virtuais.

A exposição de motivos do Projeto de Lei 2.126/2011 (que posteriormente veio a se tornar a Lei 12.965/2014) é muito clara ao detalhar o aspecto colaborativo e a preocupação com os alicerces constitucionais da nova legislação. Definiu-se, à época, que a “norma mira os usos legítimos, protegendo a privacidade dos usuários e a liberdade de expressão, adotando como pressuposto o princípio da presunção de inocência, tratando os abusos como eventos excepcionais.”

E, de fato, a base principiológica do Marco Civil da Internet tem como fundamento, dentre outros, o reconhecimento da escala mundial da rede, a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento e a liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet.

Passados 2 anos de sua vigência e recém regulamentado pelo Decreto nº 8.771/2016,o Marco Civil já é uma lei bem conhecida pela sociedade brasileira em geral. Seus principais conceitos e disposições estão, a cada dia, mais difundidos e aplicados, inclusive pelo Poder Judiciário.

- Responsabilidade dos provedores de aplicações de internet

Já está agora pacificadopelo Marco Civil da Internet que somente o Poder Judiciário tem autorização constitucional para decidir se determinado conteúdo infringe ou não o ordenamento legal, se determinado direito deve se sobrepor a outro, e, sobretudo, se as comunicações de terceiros deverão ser removidas da rede. Aos provedores de aplicações de internet não compete fazer esse juízo de valor.

Também seguindo a posição internacional, os provedores de aplicações de internet estão protegidos pelo chamado safe harbor, ou seja,  somente poderão ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

Diante desse novo contexto legislativo, todos os provedores de aplicações na internet passaram a atuar com a confiança de que a seara competente para decidir questões relacionadas à remoção de conteúdo é o Poder Judiciário e que eventual responsabilização civil somente adviria do descumprimento de ordem judicial.

Mas, infelizmente, há ainda alguns poucos precedentes que, em pleno ativismo judicial,  subvertem completamente o sistema vigente de responsabilização dos provedores de aplicações na internet.Entendendo pela inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, aplicam a responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Decisões dessa natureza são um duro golpe à segurança jurídica, com gravíssimas repercussões econômicaspara todos os provedores de aplicação na Internet atuantes no Brasil. Instaura-se uma situação caótica em que os provedores de aplicação se veem obrigados a arrogarem para si o papel de censores que lei específica e posterior ao CDC (o próprio Marco Civil da Internet) reservou ao Poder Judiciário, sob pena de responderem objetivamente perante milhões de usuários. Tudo isso com base em entendimento equivocado de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, a partir do qual se decidiu pela aplicação da lei genérica e anterior (o Código de Defesa do Consumidor).

Quando um provedor de aplicações de internet possui o dever, sob pena de responsabilidade civil, de valorar os conteúdos nele postados por terceiros, decidindo se devem permanecer no “ar” a depender de sua caracterização como ilícitos ou não, a inexorável tendência natural é que aludido provedor atue de forma conservadora, visando se eximir de qualquer responsabilização legal e econômica, bloqueando e removendo conteúdos de forma excessiva.

Foi com isso em mente que o legislador corretamente positivou no artigo 19 do Marco Civil que a análise da licitude cabe ao Judiciário e somente o cumprimento da ordem judicial cabe ao provedor de aplicações.

Ao invés de ser positivo no sentido de proteger os direitos daqueles ofendidos pelo conteúdo gerado por terceiros, o resultado prático de se impor ao provedor o poder de julgar o que lícito ou ilícito sem o crivo do Judiciário representa, na realidade, um aumento significativo de violações aos princípios constitucionais da vedação da censura, liberdade de expressão, livre manifestação de pensamento e livre acesso à informação.

O Poder Legislativo, após amplo debate com a sociedade, fez uma opção consciente pelos princípios constitucionais da liberdade de expressão, repúdio à censura e reserva de jurisdição, positivando norma neste sentido - e o Poder Judiciário não pode, nem deve, atuarno sentido diametralmente oposto, imiscuindo-se e desfazendo escolha legislativa deliberada.

- Remoção de conteúdo na internet

Com amparo no prestígio à liberdade de expressão e à livre manifestação do pensamento, o Marco Civil da Internet impediu, textualmente, a remoção de conteúdos genéricos, exigindo em seu artigo 19, §1º que a remoção deve ser apenas do conteúdo específico reputado ilícito e devidamente identificado por sua URL (endereço eletrônico).

Ao exigir identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material (URL), o propósito do Marco Civil não é outro senão assegurar a livre manifestação de pensamento, sem cercear injustamente tal garantia. Permite-se a censura cirúrgica, apenas do que o Judiciário considerar que ultrapassou o limite da liberdade de expressão.

É certo que alguns defendem a ideia de que a mera fotografia ou print de uma páginaem um dado momento, seria suficiente para identificar aquele conteúdo na internet. Mas uma foto ou um printnão permitem a localizaçãoabsoluta e certa - e com total segurança jurídica–de um determinado conteúdo na rede mundial de computadores. É possível aproximar-se da verdade, mas nunca com a certeza absoluta e inequívoca que apenas a URL específica confere.

Quando o Marco Civil de Internet exige a identificação clara e inequívoca do conteúdo reputado irregular – ou seja, sua URL específica –a lei afasta a possibilidade de localização de conteúdo na internet a partir da indicação de outros elementos como imagens, textos ou palavras-chaves.Em um universo onde milhões de conteúdos são inseridos na webtodos os dias, somente com a indicação das URLs específicas é que se pode agir com certeza, sem agredir ou prejudicar outros direitos ou partes.

- A identificação dos usuários na internet

O artigo 22 do Marco Civil da Internetproíbe o pedido de fornecimento de dados de identificação de usuários de forma genérica e sem a mínima fundamentação. É preciso demonstrar fundados indícios de ocorrência de ilícito.

E para os casos em que, de fato, o Judiciário constatou ter havido abusos, os provedores de aplicações de internet devem fornecer os “registros de acesso” daquele usuário, assim entendidos no art. 5º, VIII do Marco Civil como “o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação a partir de um determinado endereço de IP”.

Pedido de fornecimento de quaisquer outras informações, como dados pessoais, endereço, localização geográfica e conteúdos postados na rede não têm fundamento na lei.

É manifesta a opção da nossa Corte Suprema pelo prestígio da privacidade dos dados, a qual só pode ser excepcionada, por ordem judicial, “desprotegendo” apenas o mínimo necessário.Coerentemente, o Marco Civil restringiu a participação de provedores de aplicações na internet a uma demanda específica – a dita requisição judicial de registros – lastreada exclusivamente aos registros de acesso às aplicações da Internet (leia-se IP e logs de acesso).

Para estancar a discussão sobre o tema, o recém-promulgado Decreto nº 8.771/2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet, dispõe em seu artigo 11 que, realizada a requisição de dados pela autoridade administrativa competente, o provedor que não coletar dados cadastrais deverá informar a inexistência de tais informações à autoridade, ficando desobrigado a fornecê-los.

Por óbvio, se houvesse obrigação legal de guarda de outros dados que não os registros de acesso (leia-se IP e logs), o Decreto que regulamentou o Marco Civil jamais isentaria o provedor de aplicações de internet de apresentá-las. Pelo contrário, ao invés de isenção de apresentação haveria sanção pelo descumprimento. 

Odinamismo da rede, responsável por tornar a internet o que ela é hoje, existe justamente em razão de características intrínsecas a sua estrutura, como a ampla diversidade, facilidade de empreender, fomento à inovação, e, sobretudo, a liberdade de expressão, livre circulação de ideias e fluxo de informações. A consolidação do ambiente legal da internet no Brasil contribuiu para esse propósito.

Decisões judiciais flagrantemente contrárias à lei geram caos na situação legal vigente no Brasil. Ainda mais porque já foi aprovada legislação que, com forte inspiração constitucional, equaciona todas essas questões e os interesses de todos os atores da internet.

 

 


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